Da Crise à Coordenação: Como a Resposta à Cólera Está a Salvar Vidas
Este artigo de opinião foi publicado pela primeira vez no Jornal de Angola, cuja versão pode ser encontrada aqui: https://www.jornaldeangola.ao/noticias/9/opini%C3%A3o/644043/da-crise-%C3%A0-coordena%C3%A7%C3%A3o:-como-a-resposta-%C3%A0-c%C3%B3lera-est%C3%A1-a-salvar-vidas-
Por: Dr, Indrajit Hzarika, Representante da OMS em Angola.
O que acontece quando um surto ameaça milhares de vidas? Como pode um país transformar uma crise sanitária numa oportunidade de fortalecimento do seu sistema de saúde? E, sobretudo, o que está em jogo quando falamos de cólera em Angola?
Desde Janeiro de 2025 que Angola enfrenta um dos surtos de cólera mais graves das últimas décadas. Foram notificados mais de 27 mil casos e mais de 760 pessoas morreram de cólera. Por trás destes números, há rostos, famílias e comunidades inteiras afectadas. É o caso de Maria, uma mãe da província do Cuanza Sul que, de noite, percorreu longas distâncias com os filhos gémeos às costas e aos braços, à procura de tratamento. Graças à rápida activação de uma Unidade de Tratamento local, os filhos de Maria sobreviveram.
No entanto, quantos outros pais e mães desesperados não conseguiram chegar a tempo de salvar os seus entes queridos? Perante esta realidade, a resposta nacional foi imediata e coordenada. O Ministério da Saúde de Angola, com apoio técnico, financeiro e logístico da OMS e de parceiros como a UNICEF, o Banco Mundial, a União Europeia (EU), o Fundo Central de Resposta da ONU, Médicos Sem Fronteiras, o CDC África, a Cruz Vermelha, a CUAMM, a World Vision, bem como equipas de emergência médica do Reino Unido, Alemanha e Portugal, liderou uma mobilização multissectorial sem precedentes. Mas o que tornou esta resposta eficaz?
A resposta está numa liderança, coordenação e resposta baseada em evidências. Foram criados grupos multissectoriais de resposta, com a participação de várias instituições do Estado e de parceiros, tendo as decisões sido tomadas com base em dados concretos: mapas de risco actualizados diariamente, análises epidemiológicas e laboratoriais em tempo real, bem como boletins informativos diários e semanais que orientaram as acções no terreno.
Os Centros de Tratamento de Cólera e as Unidades Comunitárias foram activados e reforçados. Os profissionais de saúde receberam formação com base em protocolos actualizados. Além disso, e talvez mais importante, a vigilância epidemiológica foi intensificada em todas as províncias prioritárias.
No entanto, será que apenas a resposta clínica é suficiente? A resposta é não. A comunicação com as comunidades foi essencial. Foram instalados Pontos Comunitários de Reidratação Oral, produzidos materiais educativos e divulgada informação regular nos meios de comunicação social. Também foram mobilizados líderes locais, incluindo líderes religiosos, para promover comportamentos de prevenção. Foram realizadas campanhas de vacinação oral contra a cólera em zonas críticas.
Além disso, foram implementadas medidas estruturais para enfrentar as causas profundas da transmissão da cólera. O acesso à água potável foi ampliado com a instalação de novos pontos de abastecimento seguro, sobretudo em zonas periurbanas e rurais. Foram construídas latrinas comunitárias e foram promovidas acções intensivas de educação sanitária para reduzir a prática de defecação ao ar livre. Foram lançadas campanhas de higiene das mãos em escolas, mercados e centros de saúde, reforçando a importância de práticas simples, mas eficazes, na prevenção da doença.
Apesar dos avanços, os desafios persistem. Como garantir o acesso à água potável em zonas remotas? Como superar a resistência de algumas comunidades às medidas de prevenção? Como se pode manter a vigilância activa em áreas de difícil acesso?
Neste momento de esperança, em que se assiste a uma diminuição significativa do número de casos e da taxa de letalidade — que desceu de 8,8% em Janeiro para 1,5% em Junho — é crucial parar e reflectir: O que mais é necessário fazer para acabar com a cólera em Angola? E o que é necessário fazer para evitar que esta se repita?
A resposta está no fortalecimento do sistema de saúde. É necessário reforçar o trabalho multissectorial a todos os níveis, assegurar um financiamento adequado e flexível para uma resposta rápida, investir em infraestructuras, nomeadamente no saneamento básico, na higiene das mãos, na utilização de latrinas e na eliminação da defecação ao ar livre, reforçar o envolvimento da comunidade e a sua participação na prevenção, preparação e resposta à emergência, apostar na formação contínua dos profissionais de saúde, em sistemas de informação robustos e em redes de resposta rápida. Porque a próxima emergência pode não ser cólera, mas a preparação deve começar já.
A Organização Mundial de Saúde reafirma o seu compromisso com o povo angolano. Continuaremos a apoiar os esforços nacionais para construir um sistema de saúde mais resiliente, mais inclusivo e mais preparado. Porque cada vida salva hoje é uma vcitória colectiva e a saúde de uma nação começa com a sua capacidade de proteger os cidadãos, mesmo nos momentos mais difíceis.
E é por isso que deixamos aqui um apelo claro: que todos — governo, parceiros, sector privado, sociedade civil, media, líderes comunitários e cidadãos — nos unamos para acabar com a cólera em Angola. Que esta resposta não seja apenas uma victória sobre uma epidemia, mas um compromisso duradouro com a saúde, a dignidade e a vida.